Quando nasce um bebê, nasce uma mãe, e nasce a culpa, companheira dos piores momentos possíveis. A culpa é entregue às mães pelos personagens impossíveis da teledramaturgia, pela vizinha-mãe-de-três-e-todos-comem-tudo ou por qualquer ser humano que esteja por perto e disposto a despejar as projeções de si mesmo em quem está mais fragilizado. É apresentada por diversos contextos e pessoas, mas, sobretudo, é cultivada e construída por nós mesmas desde que somos pequeninas, quando começamos a ordenar internamente o que é bem aceito e o que é recriminado pelos nossos cuidadores e, posteriormente, por nossos amigos, professores, instituições e por aí vai. A culpa, essa entidade com dedo em riste, é produto de nossa crença e de nosso julgamento de que determinado comportamento é imoral.
O contexto desse enredo é a era da informação, na qual o dr. Google tira qualquer dúvida sobre nosso bebê, ainda que a informação não seja sempre de boa qualidade e exija cuidado na leitura. De qualquer maneira, com informação boa ou ruim, a verdade é que sabemos – intelectualmente, vale frisar – cada vez mais e criamos uma inumerável lista de “tenho que” para exercer na maternidade.
Portanto, para o bem e para o mal, sabemos hoje muito mais sobre gestar, parir e maternar, o que pode nos tornar mais empoderadas e autônomas, mas temos cada vez mais nossa intuição descalibrada e nossa confiança diminuída pela incapacidade de entregar-se visceralmente aos processos que vivemos.
Somado às incontáveis informações que adquirimos e aos ideais de maternagem que criamos, há ainda o efeito produzido pela sociedade patriarcal e capitalista que nos estimula à competitividade desde pequenas. Desde a concepção, há o mito da competição: seria o espermatozoide mais rápido ou o mais resistente que chegaria primeiro ao óvulo. Ainda bebês, recebemos as projeções dos cuidadores que comparam seu rebento com os outros e, quando se iniciam as interações sociais, brinca-se de quem chegará primeiro. E assim seguem os ensaios competitivos, todos estimulados por adultos que sugerem ou confirmam a necessidade de ser o melhor, o mais bonito, o mais rápido, o mais esperto.
Essa competitividade, que é nutrida pela necessidade fantasiosa de ser comparativamente melhor, nos acompanha por toda a vida e nos faz terríveis com nós mesmas e com as outras mulheres – e a sororidade manda um abraço! -. Lá no íntimo, o status de boa mãe muitas vezes está atrelado a sermos melhores que outras mães, ou seja, dá-se pela comparação.
Nessa comparação, buscamos nos sentir mais capazes de infinitas coisas. Esse esforço infantil para aumentar a autoestima acaba gerando vivências de depreciação e falta de empatia, pois é preciso inferiorizar alguém para que nos sintamos superiores. E aí o feitiço pode virar contra a feiticeira, gerando um sentimento de menos valia, exatamente o mesmo do qual estávamos tentando nos livrar. Isso acontece porque somos crianças feridas, pouco confirmadas em nossa essência, de modo que, se há alguém melhor, esse alguém é a outra pessoa. Além disso, o julgamento de alguém tende a ser uma projeção de um aspecto que também é da julgadora, e que pode até estar bem escondidinho, mas que é revelado nesse deslize do inconsciente.
Nessa equação, ainda podemos acrescentar que, em geral, nascemos em famílias que foram pouco disponíveis para fundir-se emocionalmente a nós, o que nos torna mães com a mesma dificuldade de compartilhar o território emocional com os filhos. O resultado disso é que, por vezes, não conseguimos nos conectar e perceber a real necessidade de nossos bebês. A sensação – via de regra, fantasiosa – de não conseguirmos suprir nossos filhos pode ser o pontapé para comparações e busca por idealizações da maternidade que nada têm a ver com o bebê em questão, mas com as filhas que fomos, com as crianças emocionalmente feridas que ainda somos.
Mas é preciso registrar: a culpa é um julgamento e não uma realidade factual. Na verdade, o que a realidade traz é a responsabilidade, e essa é a chave para lidarmos com a culpa. Vou dar um exemplo fictício, mas que é muito comum e poderia ser real.
O filho da Ana, de 3 anos, tem agredido os amigos da escola. Ana tem, então, dois caminhos: o do julgamento ou o da responsabilidade. No julgamento, ela irá se identificar com discursos incapacitantes, tais como “estou falhando na educação do meu filho” e sua reação será raivosa ou melancólica, ambas paralisantes, dificilmente construtivas. Já no caminho da responsabilidade, Ana perceberá o sentimento evocado pela situação e irá explora-lo para identificar qual aspecto dela e/ou do meio pode estar sendo manifestado pelo filho. Conseguirá, com essa escolha, acolher a criança e também se comprometer com a consciência adquirida. Sem julgar. Apenas por meio de constatações. Bem, então a culpa é de quem? DE NINGUÉM. A culpa, na essência, não existe. O que existe é a responsabilidade.
Mas, veja bem! Precisamos internalizar que o caminho da responsabilidade na maternidade não é o da perfeição, até mesmo porque o que o bebê realmente precisa é de uma mãe disponível para comprometer-se com ele, e não de uma mulher infalível. Responsabilizar-se é, em essência, assumir a própria humanidade, com tudo que há de luminoso e sombrio. E, para que isso aconteça, é primordial o autoconhecimento, o qual envolve compreender e ressignificar de onde viemos, quem somos e aonde queremos chegar.
Somente com uma inspeção profunda de si e uma intimidade com as nossas fantasias é possível entender a função da culpa em nossa existência – sim, a culpa tem sua função e este é o motivo pelo qual muitas de nós não conseguem despedir-se dela -. Abrir mão da culpa significa abandonar um funcionamento conhecido, o de ser vítima ou de ser algoz ou de sentir-se superior ou qualquer outro que seja, e reconstruir-se, encontrando uma nova maneira de relacionar-se.
Nesse caminho conduzido pelo autoconhecimento, podemos, pois, compreender a culpa que se manifesta e torná-la uma ferramenta importante, transmutada em responsabilidade. A culpa pode deixar de ser a inimiga que apenas julga e critica e tornar-se uma comadre que sinaliza que algo não vai bem e te ajuda a investigar o que se passa.
É possível então viver sem culpa? Sim, claro, desde que ela seja ressignificada. Não há, porém, uma receita de como fazê-lo. Há um caminho, que é individual e cabe a cada uma de nós descobri-lo. Esse caminho do compromisso com a consciência e a coragem para enxergar a nossa totalidade, que tem luz e sombra, podem trazer não apenas mudanças atitudinais, mas também compaixão e ternura, que são sentimentos acolhedores e também de muita força para a transformação.
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Mãe e psicóloga clínica, reverencia a vida e todas as oportunidades que os ventos trazem. Aventurando-se na arte do autoconhecimento, experimenta e propõe diversas formas de mergulharmos nos mistérios da psique para reencontrarmos nossa essência. Contatos: ananda.yamasaki@gmail.com (61) 98173-7352
Imagens: Photo via Visual hunt